O tema das prisões esteve em
evidência no ano de 2012: autoridades de peso, como os ministros José Eduardo
Cardozo e Gilmar Mendes, editoriais do Estadão e da Folha de S.Paulo, novas
pesquisas e seminários acadêmicos, juntos, passaram a impressão de que tanto o
debate público quanto as instituições começaram a enfrentar, com o devido senso
de urgência e prioridade, esse velho desafio. A inauguração do primeiro
presídio privado do País, produto de uma parceria público-privada (PPP) entre o
governo de Minas Gerais e um consórcio de empresas, pôs o assunto de volta à
ordem do dia. Infelizmente, porém, a cobertura da mídia até o momento foi de
uma frivolidade juvenil.
Já faz anos que objeções jurídicas e
econômicas ao uso desse tipo contratual para presídios vêm sendo apresentadas.
Pesquisadores ao redor do mundo, atentos às experiências em que o modelo
mineiro diz inspirar-se, não expressam o mesmo entusiasmo (dois exemplos
recentes são o artigo The Failed Promise of Prison Privatization, de R. Culp, e
o relatório da Aclu Banking on Bondage). Argumentam que, não bastassem os perversos
incentivos à violação de direitos dos presos e dos próprios funcionários que
ali trabalham, os tais ganhos em eficiência não são nada certos. Acima de tudo,
dizem, cria-se um círculo vicioso entre a proliferação de prisões privadas - um
mercado artificial, oligopolizado, com crescente poder político - e o contínuo
aprofundamento do encarceramento em massa.
Sobre essa controvérsia as reportagens
nada disseram. Nenhuma pergunta sobre os riscos jurídicos, nenhuma suspeita sobre
as vantagens financeiras, nenhum olhar desconfiado em relação à extravagante
fonte de lucro escolhida pelos parceiros privados. Ao comprarem, passivamente
a imagem da hotelaria prisional, sonegaram ao público a possibilidade da
reflexão crítica. Antes que embarquemos nesse modelo, porém, precisamos testá-lo com maior clareza do que está em
jogo.
Qualquer discussão sobre gestão prisional deve começar pela pergunta sobre a própria legitimidade do
encarceramento em massa. O Brasil é um caso exemplar dessa prática. Meio milhão
de pessoas, a quarta maior população carcerária do mundo, amontoa-se nas
prisões em condições subumanas. São submetidas à dieta física, psicológica e
moral mais degradante que conseguimos conceber, após a qual se pretende que voltem
bem comportadas e dispostas, à convivência social. Assim se resume e se repete,
há muitos anos, nossa principal estratégia para lidar com o crime. Conhecemos
bem as consequências dessa estratégia, mas historicamente aplicamos o mínimo de
nossa energia política em reformá-la.
Apesar das dificuldades práticas para
se produzir uma radiografia exaustiva do sistema prisional brasileiro,
pesquisas já revelaram que o País encarcera cada vez mais, e de maneira meticulosamente
discriminatória e irracional. Várias perguntas já podem ser respondidas com razoável confirmação empírica.
Quem são os privados de liberdade? O
retrato demográfico das prisões mostra que raça e classe social ainda são
variáveis cruciais para explicar o grau de intensidade de cada sentença
condenatória ou a decisão de aplicar a prisão provisória (para fins de
investigação). De forma geral, negros e pobres recebem tratamento jurídico
diferente de brancos e ricos. Percebe-se, enfim, que o pacote convencional de discriminação praticado pela sociedade brasileira se reflete fielmente no
perfil demográfico das prisões.
Presos por qual fundamento legal? O
retrato jurídico indica que as prisões provisórias, conforme a média nacional
representa em tomo de 40% do total. Quando se observa qual crime deu margem à
prisão, tanto a provisória quanto a decorrente de sentença, identifica-se peso
estatístico significativo de crimes não violentos. Entre estes, os crimes
relacionados a drogas se destacam. De um lado, portanto, nota-se um Judiciário
que extrapola na aplicação de prisões provisórias e, de outro, pouco
imaginativo e corajoso na experimentação de penas alternativas e na cobrança do Executivo pelos serviços que a política criminal exige.
Presos em que condições? O retrato
físico das prisões brasileiras é estarrecedor. As condições de insalubridade,
em seus diversos aspectos, a precariedade da assistência à saúde e a violência
interna estão entre os maiores problemas. Para completar, na perspectiva de gênero,
mulheres sofrem outras graves violações relacionadas às especificidades da condição
feminina. Esses exemplos configuram o que o jargão jurídico chama de
"violação estrutural de direitos", isto é, a supressão contínua e
sistemática de todo um conjunto de direitos básicos de um determinado grupo
social.
Qual o efeito, no fim das contas,
dessa política? O retrato funcional previsivelmente, mostra um óbvio
descompasso entre os objetivos oficiais da prisão - de prevenção, dissuasão e
reeducação - e os papéis reais que ela, disfarçadamente, cumpre (de repressão
da pobreza, de combustível para a demagogia política e manipulação midiática,
etc.). Tal política faz vista grossa às numerosas evidências empíricas sobre
a ineficácia da prisão para o alcance daqueles fins.
Não precisamos recorrer à famosa
frase de Dostoievski segundo a qual "o grau civilizatório de uma
sociedade" se mede, antes de tudo, por suas prisões para concluir que essa
é a face mais trágica do nosso subdesenvolvimento humano. Contrastaram-se os
fatos acima com a Constituição de 1988, como seus artigos 5º e 6º, não será
exagerado dizer que, dentro do nosso extenso passivo constitucional, essa é
uma das inconstitucionalidades mais sérias e estacionárias do Brasil contemporâneo.
É provavelmente a que mais sofre, ainda por cima, da indiferença social, da
miopia política e do oportunismo eleitoreiro. O monitoramento, pela mídia, dos
novos modelos de gestão prisional é essencial para avanços concretos. Para
tanto não se pode deslumbrar precipitadamente com a retórica da inovação
gerencial ou com atos de marketing político.
Fonte - estadodesaopaulo
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